João Cabral de Melo Neto
PEQUENA ODE MINERAL
Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.
Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.
Tua alma foge
como cabelos,
cunhas, humores,
palavras ditas
que não se sabe
onde se perde
me impregnam a terra
com sua morte.
Tua alma escapa
como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.
Nem mesmo cresce
pois permanecef
ora do tempo
que não a mede,
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro.
De pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem.
A MULHER SENTADA
Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus olhos?
Nuvens sobre seus cabelos.
(A visita espera na sala;
a notícia, no telefone;
a morte cresce na hora;
a primavera, além da janela).
Mulher sentada.
Tranqüila
na sala, como se voasse.
IMITAÇÃO DAS ÁGUAS
De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
na paria cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,
e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.
A MULHER E A CASA
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
QUESTÃO DE PONTUAÇÃO
Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);
viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):
o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.
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terça-feira, 2 de dezembro de 2008
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Um comentário:
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Não espere que eu comente os versos do primo de Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, por favor. A minha intenção é tão somente falar do Ponto "G" do ouvido dela. Eu adoraria gritar aos sete cantos desse mundo redondo e sem quina dos encantos que a mulher tem. Ponto "G", aonde fica? Eu, que tenho tempo e perspicácia já procurei e não vi, ainda. Aliás, eu acho que a mulher é o próprio Ponto, tão falado, procurado e querido. Ponto e vírgula, ponto de interrogação, exclamação e final. Nada tem sentido se o ponto "G" da mulher querida não for procurado, esmiuçado e mesmo que não for encontrado, será o pretendido.
silvioafonso
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